‘Um blog, como tudo o que na vida vale a pena, é como uma vagina’.
Esta singela afirmação, para mim, exprime uma daquelas poucas verdades que nesta vida plena de incertezas se podem dizer absolutas, e que por isso nunca deixou de estar presente no meu espírito desde que a ouvi pela primeira vez. Seria um erro pensar-se que proponho erguê-la à categoria de axioma baseado em simples intuição apriorística, o que no fundo não passaria de paneleirice pura, no sentido kantiano do termo. Não, o motivo que me leva a colocar esta frase fora do número daquelas coisas de que se pode duvidar racionalmente prende-se à autoridade da fonte citada. Ou seja, eu. A frase é minha, fui eu quem a disse pela primeira vez. E nestas coisas, meus amigos, como aliás em tantas outras, nunca me engano.
Compreendo que o facto de “citar” a frase quando o autor sou eu próprio suscite alguma confusão desse lado mas as circunstâncias extraordinárias em que a proferi obrigam-me a fazê-lo. É que em boa verdade estava ferrado a dormir quando a disse, e como não tenho certeza se seria desonestidade intelectual ou não apropriar-me de uma afirmação que não me lembro de ter afirmado prefiro atribuir o crédito ao sujeito onírico da minha personalidade e não directamente a este bem vivaço que agora escreve estas linhas de modo a evitar correr riscos legais desnecessários. E também porque quem me conhece melhor sabe que na vigília nunca teria recorrido a “vagina” com a abundância de alternativa que para aí anda. Alternativa ao termo, naturalmente, não à vagina em si. Notem que pus aspas. Alternativa à vagina só cu e mesmo assim só se forem vizinhos. Espero que tenha ficado claro por que é que sou tão picuinhas com os sinais gráficos e com a correcção da escrita em geral. Um gajo falha e está fodido, é logo paneleiro. Mas divago. Mudemos de parágrafo que este já chateia.
‘Espera lá’, verberará agora o leitor através de mim, criando um ainda mais obscuro caso de ambiguidade autoral, ‘como é possível que saibas o que disseste enquanto estavas a dormir?’ É uma pergunta legítima embora a resposta me obrigue a encetar um excurso que preferiria evitar. Enfim, que se foda, quem abre aspas abre parêntesis. Seja como for aviso já que a história que se segue não tem moral nenhuma e não acrescentará conhecimento algum a quem a ler. Aliás, quem quiser até pode saltar já para o último parágrafo da postagem, que no fundo resume tudo o que vim aqui para dizer. O resto é uma granda merda.
Para os punheteiros que sobraram, segue-se a explicação das circunstâncias em que proferi a frase de abertura desta postagem, e como vim a saber que a disse.
Não é um relato muito interessante. Aconteceu apenas que na última reunião de condomínio do meu prédio fui confrontado por um bando de vizinhos indignados a queixarem-se de que desde há uns tempos para cá se ouvia alguém na minha casa a berrar aforismos ordinários em terminologia clínica às tantas da manhã, assaz interessantes do ponto de vista filosófico mas que não deixavam dormir em condições quem no dia seguinte tinha de acordar cedo para trabalhar. Achei isto esquisitíssimo, como se pode imaginar, especialmente porque eu que lá morava não me tinha apercebido de nada. Mas a parte mais estranha até nem era essa. Segundo me informaram, o discurso fragmentado em máximas era só parte da história. O mais peculiar era que quando a palestra terminava - o que geralmente acontecia ao fim de meia hora, mais coisa menos coisa -sentia-se uma ligeira vibração nas paredes, ouvia-se uma salva de palmas e só então é que ficava tudo em silêncio. Noite após noite, isto repetia-se. O mistério deixou-me pasmado. Para ganhar algum tempo pus as culpas na administração e desviei o assunto para o casal de ucranianos do 3º esquerdo que não pagava as quotas há não sei quantos meses porque só cá vêm é para chular quem anda todo o dia a vergar a mola para lhes pagar os subsídios, e era mandá-los todos para a terra deles cambada de filhos da puta que não têm outro nome, a eles e à criançada encardida que propagam só para os porem aí a roubar. Quando começou tudo à batatada saí de fininho e fui para casa pensar.
Sabendo de antemão que não seria possível especular inteligentemente no que à parte da vibração e das palmas concernia, escusei-me a abordar esse tópico e fiquei-me pela parte do discurso aforismático. A esse respeito não era difícil chegar a uma conclusão. Uma vez que as pessoas que costumeiramente partilham comigo o quarto a tais horas da noite não possuem inteligência suficiente para produzirem aforismos (regra geral ficam-se pelos ditongos, compensando a pobreza intelectual do discurso no volume, tanto do som como das tetas), fiquei convencido de que tinha o espírito do La Rochefoucauld a assombrar-me a casa. Como tenho visto em filmes da tanga recentes que fantasmas e aparições em geral são susceptíveis de captação por via de toda a espécie de aparelhos de gravação disponíveis em qualquer loja de electrónica, decidi tentar apanhar o cabrão do espectro em flagrante com a minha câmara digital de infravermelhos, utilizada de tempos a tempos na filmagem do programa “Achas que Sabes Foder?”, que me orgulho bastante de produzir e realizar apesar da sua fraca audiência, composta inteiramente por uns amigos meus. Terminada a instalação da câmara num ângulo que abrangia o quarto todo, deitei-me, de barriga para cima, por via das dúvidas, porque com um francês à solta em casa, vivo ou morto, é certo e sabido que se não tomasse precauções mais cedo ou mais tarde ia comer com o croissant na bilha.
Acabei por descobrir que afinal o misterioso orador nocturno era eu próprio. Comprovei-o logo no primeiro vídeo que gravei. De início parecia que não ia acontecer nada. Na televisão via-se apenas o meu quarto com a cor esverdeada típica dos filmes porno filmados às escuras e deitado no leito, ao centro, eu, a ressonar que nem uma besta. Quando estava quase a perder a esperança de descobrir o que quer que fosse deu-se uma inesperada reviravolta na trama: passadas umas duas horas de sono pouco atribulado e de tesão que ia e vinha debaixo dos lençóis (em fast forward dava a curiosa ideia de que o Alien estava a tentar escapar dos meus colhões) dei comigo a erguer-me subitamente da cama toda remelento e despenteado a amarrar o lençol ao pescoço para fazer uma capa, não me perguntem porquê. Isto foi por volta das quatro e meia da matina. Depois, decorridos alguns segundos em que não fiz mais nada senão bambolear o corpo que nem um mongolóide a babar-me todo, abri os braços num gesto de profeta que vai discursar para a multidão e expeli em voz tonitruante as mais espectaculares frases que alguma vez ouvi alguém dizer onde quer que seja, bastante brejeiras no seu conteúdo mas sempre pautadas por um grande pudor vocabular. No final de meia hora disto, alcei da perna, larguei um peido em tom de barítono, bati palmas e depois de desatar o lençol do pescoço voltei a afocinhar na almofada onde fiquei a salivar até de manhã.
Apesar de ter resolvido de uma assentada todos os mistérios forenses deste peculiar caso estaria a mentir se dissesse que não fiquei preocupado. Foda-se, quem não ficaria à rasca tendo descoberto que o seu subconsciente é na verdade uma espécie de cruzamento entre o Confúcio e o Quim Barreiros que aplaude a sua própria flatulência do alto de um púlpito imaginário? Decidi agir. Em dias normais não encontro diferença entre psicanálise e bruxaria mas como isto até tinha todas as marcas da possessão demoníaca lá ganhei coragem para levar o vídeo a um profissional e pedir-lhe uma explicação científica para o caso. Assim foi. Dirigi-me a um consultório da especialidade e expliquei o problema ao charlatão de serviço. Findo o relato, este, sem dizer uma palavra, levantou-se e fez sinal com o dedo para que o seguisse até uma sala ao lado que tinha uma televisão e leitor de DVD. Sentou-se num cadeirão e pediu-me que lhe mostrasse o vídeo. Obedeci. A minha preocupação cresceu ao ver as reacções do homem. Meneava a cabeça, cofiava a barba branca, escrevia no seu caderninho, emitia uns sons guturais indecifráveis, franzia o sobrolho e pediu-me para voltar atrás várias vezes na parte do peido. No final, arrancou a folhinha do caderno em que estivera a escrever desde o início e entregou-ma. Cheguei a pensar que era uma receita mas afinal era o número da empresa de um primo dele em Chelas que se dissesse que vinha da parte do Vítor teria todo o gosto em fazer-me um desconto na insonorização do quarto. Aquele cabrão teve a lata de me dizer que com o subconsciente não se brinca e que se o meu quer falar e peidar-se, é deixá-lo. Em todo o caso, sugeriu que continuássemos as sessões, e que fosse trazendo mais vídeos se os tivesse.
Infelizmente, mesmo depois disto o problema persistiu. Não só os discursos filosóficos nocturnos continuaram como certa manhã, no rescaldo de uma festa de anos em que me entupi de arroz-doce, acordei com um cagalhão nas cuecas, sem dúvida resultado de algum excesso de confiança por parte do meu subconsciente no cumprimento do seu característico ritual de despedida no final das prelecções. Foi quanto bastou para me dar o alento necessário a tentar novamente a minha sorte. Há que dizer que o novo psicanalista a que fui deu muito mais atenção ao meu caso, talvez por ser um pouco belfo e por isso saber bem a crueldade que patologias engraçadas como as nossas suscitam no próximo. O seu diagnóstico preliminar foi que o filtro que impede o subconsciente das pessoas normais de largarem caralhadas em público se encontrava invertido no meu caso, pelo que durante a vigília só digo é merda ao passo que no sono sou extremamente educado, dizendo antes fezes. Garantiu-me que bastariam alguns meses de terapia para que tudo se resolvesse, embora me tenha aconselhado a abandonar de vez o consumo abundante de alimentos com muito açúcar, que manifestamente me davam a volta à tripa. Ironicamente, estas doces palavras foram para mim um alívio. E tenho a certeza de que este indivíduo teria cumprido a sua promessa e me teria curado, não fosse o facto de o meu subconsciente lhe ter ligado às cinco da manhã para informá-lo de que os seus serviços já não seriam necessários, e que se continuasse a meter o bedelho no que não lhe dizia respeito trataria de enfardar um sortido inteiro de doçaria conventual com o expresso propósito de se dirigir ao hospital onde a sua mãe jazia lúcida mas paralisada devido à sua recente trombose e defecar-lhe sem limites para dentro da boca cronicamente aberta com a beiça a dar de esguelha. Depois, estimando as melhoras da senhora e lamentando imenso não lhe ter sido possível ligar a uma hora menos imprópria, desligou. E pronto, a coisa ficou por aí. Não há mais nada a dizer, continuou tudo na mesma com a excepção de que agora ganho uns cobres extra a dar explicações de Filosofia enquanto durmo a sesta aos fins-de-semana. Eu avisei que a história era uma merda.
Mas voltando à citação inicial, que agora parafrasearei com um pouco mais de liberdade, um blog é realmente como uma cona. Segue-se daí que postar é algo como foder. Na maioria das vezes posta-se por postar, superficialmente, como quem fode só porque a punheta às vezes parece que já aborrece. Noutras ocasiões, a extrema profundidade da posta em causa exige mais tempo de preparação, preliminares mais extensos, por assim dizer, para que a ideia não arranhe muito a entrar, tanto a quem escreve como a quem lê. Em casos que tais não se pode postar com brutidade. Há que arregaçar as mangas e deitar dedos e mãos à obra com disposição para perder tempo, até mesmo horas, se for preciso, só a preparar o caminho para o que virá a seguir, como quem estimula com afecto uma pachacha já entradota nos seus quarentas e por isso menos fácil de deixar pingona – embora seja de referir que neste último ponto a analogia não funciona tão bem porque “perder horas” a escrever num blog, ao contrário da situação do outro lado da metáfora, não se reifica tão facilmente na perda efectiva do relógio.
Serviu assim esta posta para lubrificar o blog e acautelar o leitor que voltará a estas paragens com o intuito de ler a segunda parte do manual do engate filosófico, a publicar para a semana. Será fodido e exigirá perseverança intelectual mas a recompensa será garantidamente rapadinha ou peluda, consoante o gosto individual. Talvez tenham ficado fodidos com esta prolixa falsa partida mas, Oh!, feliz daquele que está desse lado e que é avisado das dificuldades que o esperam... Não sabe a sorte que tem. Eu, desditoso que sou, desconhecendo o efeito que a fatia de bolo de mel que comi hoje ao almoço terá no meu organismo, terei que dormir com o cu embrulhado em celofane.
Ao leitor que tenha seguido o conselho que lhe dei no início e assim saltou logo aqui para o último parágrafo, desejo mandá-lo do fundo do coração para esse crustáceo que é a cona da sua mãe, pois vá-se foder, não vim aqui escrever para o boneco.